UM TRONCO DE MUITO CERNE, autobiografia de Alberto Ansbach

Original manuscrito em alemão, traduzido por Frederico Ansbach e publicado em livro pela Imprensa Universitária de Ponta Grossa em 1995.

Nasci no dia dezoito de março de 1877 na cidade de Naumburgo/Sale – (Naumburg an der Saale), Dresden, Alemanha. Fui batizado na Igreja Luterana dessa cidade como Adelbert Ansbach. Os meus anos de infância não foram ruins, mas também não foram vividos sobre tapetes ou pétalas de rosas.

Em certo dia do ano de 1884, meu pai Frederico e meu tio paterno, Carlos, resolveram acompanhar um grupo de imigrantes com destino ao Brasil. Do grupo participava a família Friederich, com a qual mantinham relações de amizade, e, acompanhando-a, foram parar em Joinville. O objetivo da viagem de ambos era conhecer o Brasil e a Argentina e, após estudarem os prós e os contras, resolver para qual deles poderiam mudar-se. Eu e minha mãe, Luíza, permanecemos na casa de minha avó materna. Aos nove anos, minha avó matriculou-me no primeiro ano letivo de uma escola municipal. Durante todo o período escolar, fui um aluno dedicado e os professores muito me estimavam. Testemunho disso é o fato de que até os quarenta anos eu ainda mantinha correspondência com um deles.

Passados dois anos, recebemos uma carta do meu pai e do meu tio, informando que, após uma dramática viagem de navio a vela, boiando quatro meses mar afora, chegaram finalmente ao porto de São Francisco. O grupo de imigrantes utilizou um pequeno navio e, através de um braço do mar, conseguiu atingir a Vila de Joinville. Dali partiram a pé, por estrada carroçável, denominada Dona Francisca, até a cidade de São Bento. Tal como aconteceu a todos os imigrantes, meu pai e meu tio sofreram muito com a mudança de clima, de alimentação, de sistema de trabalho, enfim, era tudo diferente daquilo a que estavam acostumados. Em várias localidades em que estiveram, trabalharam recebendo em torno de oitocentos réis por dia, economizando duramente para poder prosseguir viagem.

A próxima cidade visada era Ponta Grossa. Na entrada da cidade, caçaram um carancho, pensando que se tratasse de um jacu. Apesar de não ser comestível, a carne dessa ave de rapina, na hora do almoço, saciou os apetites. Meu pai logo encontrou trabalho na serraria do Sr. Frederico Bahls de Almeida, que falava alemão assim como o dialeto pomerano – uma vez que os seus pais eram provenientes da Pomerânia – o que facilitou o entendimento. Era difícil encontrar emprego na região, pois o regime escravagista ainda vigorava. Além disso, havia a dificuldade de comunicação com os negros, a qual se resolvia através da mímica. O tio Carlos também logo foi contratado pelo Sr. José Pedro Carvalho, mais conhecido por Juca Pedro, para servir ao novo chefe do curtume, Sr. Oscar Roedel, oriundo da cidade de Blumenau. Como ambos os contratados falavam o alemão e possuíam conhecimentos da profissão, a pequena indústria começou a se desenvolver bem. O curtume ficava no final do bairro da Ronda, à margem do ribeirão, onde hoje passa a rodovia.

Meu pai e meu tio permaneceram em seus empregos o tempo necessário para juntar dinheiro para a viagem à Argentina.  A maior aspiração de meu pai era encontrar um lugar em que pudesse trabalhar por conta própria como artesão. Esta era a sua profissão. Sabia, porém, que no Brasil isso seria muito difícil devido à mão de obra escrava. Na Argentina, se empenharam  nos mais árduos trabalhos, principalmente em olarias. Os argentinos, por exigência climática, têm necessidade de aproveitar o calor do verão para produzir o máximo, pois a baixa temperatura do inverno não permite trabalhar a argila por um período de quatro a cinco meses no ano.

Trabalhando em diversos locais e, sempre que possível, nas profissões de carpinteiro ou marceneiro, mais rendosas, foi-lhes possível, em dois anos, ganhar o suficiente para voltar à Alemanha. Já tinham estado ausentes, aventurando-se, por quatro anos. O tio Carlos, no entanto, preferiu permanecer na Argentina. Meu pai voltou, sentindo-se profundamente frustrado por separar-se do irmão. Após um ano, começou a sentir saudades da liberdade de vida nos países sul-americanos. Além disso, eram insistentes e animadores os chamados do tio Carlos. Assim, num certo dia, meu pai decidiu retornar definitivamente para a Argentina, levando a família.

Nos primeiros dias de outubro de 1889, vendeu todas as propriedades. Despedimo-nos de todos os parentes e amigos e embarcamos rumo ao Porto de Antuérpia, na Bélgica. Ali tivemos que aguardar dois dias, a fim de que pudesse ser organizado novo grupo de imigrantes com destino à Argentina. Durante a folga, visitamos a bela capital belga. Coincidiu sermos surpreendidos por uma colossal explosão, seguida de um clarão ofuscante e de um assustador tremor de terra, que deu a impressão de que toda a cidade estava desaparecendo. Soubemos depois que a fábrica de munições, nas imediações do porto, tinha ido para os ares.

No dia seguinte, fomos ao porto para conhecer de perto o navio que nos levaria à América do Sul. Tratava-se de um belo barco. Seu nome, Strassburg, estava escrito na popa. Comandava-o o capitão Rothenburg. O navio era impulsionado de uma forma mista, com motores térmicos à base de carvão mineral para os dias de calmaria, e o emprego de velas em dias em que havia vento. Quando essas se enfunavam, o navio dobrava de velocidade. Ao partirmos, tudo era uma gostosura, mas tão logo alcançado o alto mar, o navio começou a balançar e a sacolejar. Foi um Deus nos acuda. Todo mundo sofreu com enjôo. Fui um dos primeiros a procurar a cama da nossa repartição. Devo esclarecer que, embora o navio fosse de passageiros, não possuía cabines. Os dormitórios eram dispostos em salões coletivos e estes repartidos em seções conforme o número de ocupantes.

Pouco antes da partida, eu tinha visto meu pai comprar uma garrafa de Genebra (aguardente destilada de cereais), porque lhe chegou a informação de que se tratava de uma bebida que evita enjôos. Vi-o guardá-la debaixo do travesseiro e, na intenção de curar-me, fui bebericando aos pequenos e sofridos goles, o tal remédio. Infelizmente, em vez de melhorar, fui piorando. O mundo passou a virar e os objetos multiplicaram-se: eu estava bêbado. Meu pai, vendo que eu havia mudado de aparência, levou-me ao deck superior. Lá, a brisa marítima me fez entrar num mal-estar absoluto. Botei para fora até o que não possuía no estômago! Aliviado, fui melhorando, mas não confessei que o mal-estar provinha do conteúdo daquela garrafa: era muito provável que ele me desse umas boas lambadas ainda por cima!

Após três dias chegamos à cidade de Vigo, na Espanha. Recebemos a bordo muitos imigrantes espanhóis com destino à Argentina. Felizmente, eles foram ocupar o deck abaixo do nosso, quase no porão. A promiscuidade em que viajavam fazia-nos lembrar das histórias dos navios de escravos. Esses imigrantes eram gente desprovida de educação, de baixíssimo comportamento. Nem sequer sabiam usar o vaso sanitário, usavam-no subindo sobre as bordas e defecavam ao lado dele. Dentro de pouco tempo, um mau cheiro insuportável espalhou-se por quase todo o navio. O capitão destacou um guarda permanente para as repartições sanitárias, a fim de ensiná-los a fazer o uso dos vasos.

A promiscuidade em que viviam contribuía para a proliferação de pulgas, percevejos e piolhos. Quem ainda não conhecia esses parasitas passou a ser hospedeiro deles. N a tentativa de eliminar a propagação desses insetos, o capitão ordenou que ninguém, dentre os espanhóis, permanecesse durante o dia no seu aposento ou, melhor dito, no espaço a cada um destinado. Durante o dia foram obrigados a permanecer no deck superior. Aí então a preocupação dos demais passageiros subiu ao clímax. É que as mulheres passaram a catar os piolhos e pulgas dos filhos e maridos, e vice-versa. Foi um espetáculo asqueroso, repugnante! Além disso, por absoluta falta de educação, aquela gente criou um tumulto permanente, disputando, a empurrões, socos e xingamentos, a torneira de água potável. Foi necessário destacar um guarda enérgico e impiedoso para conseguir alguma ordem.

Finalmente, após quase três meses, chegamos à ilha de São Vicente, em São Paulo. O navio foi reabastecido com carvão e água potável. Ali um grupo de jovens escravos negros disputava entre si as moedas que esmolavam e que os passageiros jogavam no mar. Eu me divertia vendo a habilidade com que aqueles homens mergulhavam para apanhá-las no fundo. Havia alguns tão ávidos pelas moedas maiores que passavam por baixo do casco do navio; às vezes, até briga havia entre eles. Devo esclarecer que, naquele local, a água era tão límpida que se podia acompanhar os mergulhadores em todos os seus movimentos. A parada serviu, também, para sepultar em terra os cadáveres de diversos menores que haviam falecido no navio, no dia anterior.

No dia seguinte, partimos com destino a Montevidéu, onde desembarcariam alguns imigrantes. Mais três dias de navegação e lá estávamos. O desembarque foi rápido e, após algumas horas, finalmente chegamos ao nosso destino, Buenos Aires. As instalações portuárias muito nos impressionaram. Tudo de primeira, muito zelado e com um movimento intenso de locomotivas, vagões e guindastes.

Do porto, fomos conduzidos por um bonde tirado por uma parelha de cavalos, até a Casa do Imigrante. O estilo desta casa era parecido com o de um pombal devido ao seu formato redondo e aos vários pavimentos superpostos. Todas as.repartições eram muito bem projetadas e dotadas de instalações sanitárias excelentes. Comparadas às instalações do navio, elas nos pareceram um castelo da alta corte. A casa ficava situada perto da estação ferroviária e de um grande depósito de gás.

No dia seguinte, meu pai foi procurar o tio Carlos, que se encontrava trabalhando na estância São Rodolfo. Depois de dois dias, veio nos buscar e partimos de trem, chegando, no dia seguinte, à estação de Pacheco, onde o tio Carlos nos aguardava com uma carriola puxada por dois belos cavalos. Tudo para mim era novidade. Finalmente, à meia noite, chegamos ao nosso destino: Fazenda São Cristóvão. No dia seguinte, fomos apresentados aos nossos futuros patrões, a família Calsada, donos da fazenda e tradicionais na região. Receberam-nos com muita amabilidade e, para nossa surpresa, a família dominava a língua alemã com perfeição. Mantinha até uma empregada e uma governanta alemãs, para ensinar aos filhos a língua germânica.

Meu pai foi contratado de imediato como chefe de uma grande olaria que existia na fazenda. Minha mãe ficou encarregada do setor agrícola e da lavanderia. Tudo era bem instalado. Eu fui encarregado da manutenção do jardim. Ali aprendi a conhecer as formigas carregadeiras que, no início, me deram muito trabalho. Perto da sede existia um riacho bastante piscoso, rico em enguias, as quais se pescava com certa facilidade. À beira do mesmo riacho encontrei, pela primeira vez, um ninho com ovos de tartaruga. Levei-os para casa e mamãe os cozinhou. Infelizmente eram intragáveis e os poucos que eu consegui engolir não permaneceram por muito tempo no estômago. Creio que eles deviam ser preparados por processos desconhecidos por nós.

Via minha mãe chorando com muita freqüência. Jamais perguntei-lhe o motivo, pois já imaginava que seria a saudade dos parentes e amigos que ficaram na terra natal, acrescida ainda da falta de conforto em que vivíamos. Na Alemanha, havíamos deixado moradia de alvenaria muito bem instalada e, aqui, ocupávamos um rancho baixo de chão batido e teto sem forro, coberto de telhas de zinco, que tinha apenas dois cômodos: uma pequena cozinha e um dormitório. Durante o dia fazia um calor insuportável e, à noite, muito frio. Além do mais, havia pouca gente que compreendia nossa língua. Tudo contribuía para aquele estado permanente de melancolia que abatia o ânimo da coitada da mamãe.

Com a técnica. que o meu pai e tio Carlos dominavam e aplicavam na administração da olaria, a produção aumentou tanto que ultrapassou a demanda, e o nosso patrão resolveu suspender a fabricação de tijolos para aumentar a produção no setor agrícola. O dirigente dessa seção de atividades era um ex-oficial da Gendarmeria de Berlim, de nome Otto Von Lossberg. Não era agrônomo, não tinha grandes conhecimentos de agronomia, mas tudo corria otimamente bem. Infelizmente ele não permaneceu por muito tempo conosco, uma colocação mais vantajosa o levou. Foi substituído por um espanhol. Meu pai e meu tio foram encarregados de construir uma ponte sobre um pequeno rio no interior da fazenda. Meu pai era, modéstia à parte, o que se costuma chamar “pau para toda obra”. Perguntado se sabia executar a ponte, respondeu, de pronto, afirmativamente. O espanhol percebeu que meu pai e meu tio eram bem tratados pela família do patrão. Mordido de ciúme e também possivelmente temeroso de algum dia ser alijado da posição de chefia, começou a persegui-los, criando dificuldades sobre dificuldades para tudo o que os “alemães” tinham que realizar. Eles resolveram pedir demissão.

Assim, no dia onze de março de 1890, despedimo-nos da família, em meio de calorosa demonstração de amizade da senhora da casa, que chorava copiosamente. À noite, fomos transportados de volta à estação de Pacheco, onde pernoitamos na plataforma.

No dia seguinte, doze de março, dia do aniversário de papai, embarcamos em direção ao norte da Argentina, onde começara a colheita de milho e, segundo comentários, havia muita falta de mão de obra. Além disso, visávamos adquirir ali uma propriedade, já que se iniciara a colonização na região e terras bem produtivas estavam sendo vendidas por preço bem acessível.

Dirigimo-nos ao porto fluvial do rio Paraná, denominado Campanha. Infelizmente, ali, antes do embarque, meu pai foi ludibriado por um vigarista, que lhe roubou todo o dinheiro que possuíamos, inclusive a quantia referente à venda da nossa propriedade na Alemanha. Ficamos desorientados num país desconhecido, sem dinheiro, sem comida e sem teto. Aconselharam-nos a procurar o Departamento de Imigração, que pagaria a continuação da viagem, mas nem esse recurso nos cabia, pois havíamos chegado ao país há mais tempo do que o estipulado para tal atendimento.

Mamãe entrou em desespero e se pôs a chorar convulsivamente. Pude, naquele transe, constatar a firmeza de papai e o amor que os unia. Tomei a atitude corajosa e o carinho com que ele procurou acalmar mamãe como um exemplo inesquecível na minha vida. Com a família sem recursos, desprovida até da esperança de alcançar o local a que se destinava e, em meio à agitação febril da situação, papai não permitiu que a sua coragem o abandonasse e procurou nos induzir calma para podermos prosseguir de ânimo levantado. Repetia: “Não estamos perdidos. Estamos unidos e, com ânimo, acharemos solução. Não somos malfeitores e Deus sabe disso. Ele não nos abandonará. Tenham fé! Nós resolveremos esta situação.”

Em meio à cena dolorosa, surge, inesperadamente, o capitão do navio. Nunca compreendemos como ele chegou a saber da nossa precária condição. Veio nos oferecer a oportunidade de continuarmos a viagem como tripulantes encarregadas de diversos serviços no navio. Minha mãe e eu viajamos na condição de familiares de papai e do tio Carlos.

Assim, após vinte e quatro horas de viagem, chegamos à tão sonhada Santa Fé. Realmente, foi a santa fé em Deus que infundiu coragem a papai para nos transportar até a cidade desse nome. Despedimo-nos do Capitão com soluços e lágrimas de agradecimento. No mesmo dia, meus pais seguiram para a cidade de Esperança, local onde papai e tio Carlos já haviam trabalhado quando da sua primeira viagem, quatro anos antes. Foram para a fazenda do Sr. José Borba, que tinha uma olaria. Tio Carlos e eu ficamos em Santa Fé e dormimos no porto, entre caixas, caixões e outras mercadorias ali depositadas.

Naquele local eu senti, pela primeira vez na vida, a dor da fome.  Felizmente, no dia seguinte, meu pai (com a ajuda recebida do Sr. José Borba) veio buscar-nos e nos levou para a vila de Humboldt, porto da cidade de Esperança. Lá nos foi cedida, como moradia provisória, a antiga vivenda do Sr. José Borba. Quando da primeira visita de papai e tio Carlos, ele possuía uma pequena serraria movida a vapor. Agora ele participava, como sócio-diretor, de uma grande e moderna serraria.

O Sr. José Borba nos dedicava grande simpatia. Além de socorrer-nos com empréstimo em dinheiro, teve a gentileza de convidar-nos diversas vezes, para o almoço e a janta, à mesma mesa de seus familiares. No primeiro almoço, esfomeado como eu estava, confundi a polenta que veio à mesa com virado de ovos, um dos meus pratos prediletos, e me servi de porção dobrada. Meu pai lançou-me um olhar condenatório, pois ele já conhecia o prato e, de pronto, imaginou o meu engano. A educação germânica exige que o prato servido deve ser totalmente consumido. Assim, eu me empanturrei a tal ponto que, durante muitos anos não suportei ver polenta. Só muito mais tarde, já no Brasil, e preparada de outra maneira, passei a apreciá-la.

Após mais alguns dias, voltamos à cidade de Esperança, onde meu pai encontrou trabalho numa olaria. Embora tivesse apenas treze anos, tive que ajudá-lo, trabalhando em expediente integral (dez horas por dia), pois a ordem era ganhar para pagar, o quanto antes, a dívida contraída com o Sr. José Borba. Após alguns meses, fomos convidados pela família Stickmeier a participar do casamento de um dos seus filhos. Na oportunidade, meu pai  contratou com o Sr. Stickmeier a construção de uma casa, uma ferraria, um poço, um paiol e várias outras dependências.

Meu pai era um homem de muito ânimo e, no ramo de construções, possuía inúmeras habilidades. Esse contrato proporcionou-nos a renda que nos permitiu saldar a dívida. O Sr. Borba percebeu a honestidade do meu pai, que, para lhe pagar, sacrificara a própria família: nossa roupa não passava de andrajos e andávamos descalços. Ofereceu-nos, então, uma fazenda abandonada que possuía na colônia Bujardo, para que a desenvolvêssemos na condição de meeiros.

Estabelecidas as condições, começamos uma nova vida. Tio Carlos, no entanto, preferiu permanecer na olaria. Como há anos a fazenda não era trabalhada, tudo necessitava ser recuperado. A casa não tinha telhado e se resumia em apenas dois compartimentos: quarto e cozinha. Ao lado, havia um pequeno anexo que possivelmente era usado para depósito de produtos da lavoura e de ferramentas. Ao redor das benfeitorias, vicejava um capim de alto porte e de cor avermelhada. Cortamo-lo e o empregamos na cobertura do nosso rancho. Felizmente acertamos, o capim serviu como ótimo impermeabilizante.

Nossa segunda atividade: limpar o poço e construir um forno. Realizados esses trabalhos, nos mudamos para a “mansão”. De mobília só possuíamos três camas de campanha e uma cômoda bem trabalhada, da qual mamãe não permitia separar-se, e mais uma velha mesa com dois bancos. O espaço da horta transformara-se num mato. Aproveitamo-lo como combustível para o fogo da cozinha. Naquela época, era costume na região usar excremento seco de eqüinos e bovinos, abundante nos pampas argentinos, como combustível.

O Sr. José Borba nos cedeu, além de um cavalo para montaria, dois cavalos velhos, inadequados para a tração rápida dos troles e das pesadas carroças, mas ainda úteis para o arado, e mais dois bois carreiros. A fazenda não possuía potreiro fechado, muito menos curral. Éramos obrigados a manter os animais amarrados durante a noite. Logo na primeira noite, os dois bois se soltaram e fugiram. Meu pai obrigou-se a procurá-los logo que percebeu. a fuga e só os encontrou de madrugada, na lavoura de milho do vizinho, já empanturrados. Ao atrelar os bois no arado pela primeira vez -jamais papai trabalhara com bois- não conseguimos fazê-los render o suficiente. O vizinho, percebendo a nossa dificuldade, veio nos dar ajuda, mostrando-nos que havíamos procedido de maneira errada na colocação da canga nos bois e na técnica de atrelamento.

No dia seguinte, tudo funcionou bem e, assim, pudemos arar e semear diversos hectares da “nossa” fazenda. Mal havíamos cultivado a área à nossa disposição, fomos surpreendidos por um temporal. Três dias de chuva ininterrupta, seguidos de muito frio e do vento Sul (Minuano). Na falta de um potreiro ou de outro abrigo para os animais, somente os dois bois e o cavalo de sela suportaram a intempérie. Não havia, nas condições em que nos encontrávamos, trabalho a realizar na área ocupada. A alfafa que plantáramos ainda não se encontrava no estágio do primeiro corte e toda a área disponível para o plantio já se encontrava cultivada.

Passamos, pois, a buscar trabalho por empreitada nos vizinhos agricultores e em algumas olarias. O dinheiro ganho nos permitiu melhorar o nosso surrado vestuário, a nossa morada e levantar abrigo para os animais que nos restavam. Pudemos, então, construir, com todo o capricho, um curral coberto. Para melhor defender os animais das correntes frias provenientes do sul, construímos os fundos em alvenaria. A condição física dos animais passou a melhorar ainda mais, pois a cevada, plantada no início das nossas atividades, já estava em condições de servir-lhes de alimento. Recebemos a primeira visita do Sr. José Borba, o qual, sabedor do nosso infortúnio durante os dias do minuano, mandou domar dois lindos cavalos baguais, com os quais nos presenteou.

Devo esclarecer que, nos capões e pampas argentinos, a criação de cavalos era espontânea, sem nenhum cuidado ou orientação humana. O início da história da criação de cavalos na Argentina deve-se aos espanhóis Don Mendosa e Davi Cordoba que, há mais de 150 anos, soltaram uma manada de finas raças inglesas e árabes nos extensos pampas ali existentes. A criação selvagem produziu muitos  animais de boa linhagem, daí a razão da Argentina possuir, ainda hoje, um dos rebanhos  eqüinos mais ricos da América do Sul *. Embora a parelha que ganháramos fosse domada, para nós, inexperientes na lida com animais, não foi fácil aprender a conduzi-la convenientemente. A nossa lavoura de trigo estava amadurecendo e seu aspecto viçoso enchia-nos de orgulho. A cevada granava em espigas grandes, cheias e pesadas, o milho prometia boa colheita, e a  alfafa já estava quase boa, pronta para o segundo corte. Toda a propriedade se encontrava verdejante e nos enchia de esperança, permitindo-nos fazer planos para o futuro.

Mas a agricultura, se por vezes permite grande e pronto sucesso, reserva, também, inesperadas frustrações que chegam a desesperar os que nela mourejam. E a nós estava reservada uma dessas profundas decepções. Veio-nos a notícia da aproximação de uma grande nuvem de gafanhotos. Através de leitura e comentários, já havíamos tomado conhecimento da gravidade desse tipo de praga, mas nunca imaginávamos a proporção e a rapidez  com que se dá a catastrófica devastação que ela produz,. Toda aquela imensa e variada vegetação, que nos custou mais de um ano de trabalho e sacrifício, ficou reduzida a terra nua em poucos minutos.

Para quem ler esta minha descrição, eu confirmo com a maior veemência: mais de cem alqueires de plantações foram devorados de forma arrasadora no curto espaço de 20 ou 30 minutos. Eram onze e meia. Tínhamos acabado de almoçar e nos preparávamos para dar água aos dois bois, no cocho que papai havia construído ao lado do poço, quando divisei no espaço, em meio ao dia ensolarado que fazia, uma enorme e negra nuvem. Corremos para a lavoura com paus e latas vazias, porque haviam nos informado que, gritando e batendo nas latas, espantaríamos os gafanhotos. No entanto, mal conseguimos salvar a pequena horta e uma parte do trigo que havíamos plantado antes do tempo, a qual já se encontrava em condições de colheita. O trigo só pode ser salvo porque suas hastes, secas e duras, resistiram ao apetite devorador desses amaldiçoados insetos.

Porém, quando pensamos que a tragédia já havia passado, quinze dias após, tudo começou de novo! Os ovos de gafanhoto que as fêmeas haviam depositado no solo estavam eclodindo, e o que havia brotado foi consumido pelos saltões. Saltões são as larvas semi-desenvolvidas dos gafanhotos. No estágio de sair dos ovos ainda não podem voar e, então, aos saltos, consomem as folhas verdes da área em que os ovos foram depositados. Ficamos, assim, sem a nossa horta. Como nada mais tínhamos para colher, fomos trabalhar nas olarias, a fim de ganhar o necessário para sobreviver.

Com a venda do trigo precoce, foi-nos possível fazer várias melhorias na nossa moradia e ainda sobrou dinheiro para a compra de uma boa vaca leiteira. Como minha mãe soube aproveitar bem o leite abundante que então passamos a ter, a nossa alimentação melhorou muito.

Num certo domingo, fomos ao culto em Santa Fé e papai aproveitou para matricular-me no curso de preparação para a confirmação, pois éramos luteranos. Isto muito me alegrou porque me proporcionava a alegria de poder cavalgar duas vezes por semana até a cidade e, como cristão, preparar-me para abraçar, conscientemente, a fé cristã.

Em casa, tudo parecia também estar se encaminhando para melhores dias. Meus pais amanheciam mais alegres e dispostos.  também fui tomado por esse estado de espírito. Numa visita do . Sr. José Borba, ele também foi contaminado pelo nosso entusiasmo e, para nos incentivar ainda mais, desistiu da parte que lhe tocava, como meeiro, daquilo que produzíramos. O gesto nobre do Sr. José Borba renovou-nos a convicção de que ainda havia solidariedade neste mundo. Dobramos a área de plantio de trigo e alfafa e melhoramos a nossa horta.

Nesse ínterim, eu completara meu curso preparatório de confirmação e, no Domingo de Ramos, aconteceu a costumeira prova que antecedia esse ritual. Neste ponto, me permito deixar a modéstia à parte: me saí tão bem na prova que, no encerramento, o pastor fez referências elogiosas a mim e, na saída, todos vieram cumprimentar-me. Minha mãe me abraçou, chorando de orgulho e alegria. Meu pai não pode estar presente naquele momento, ficara em casa para cuidar de nossas coisas. Minha mãe, exultante, levou-me a uma confeitaria perto da igreja e mandou que eu escolhesse um prato de doces de minha preferência. Uma vez escolhido e, na companhia de uma gasosa, nos sentamos e nos deliciamos.

No mês seguinte, maio, começaria o inverno. Passamos a executar os serviços de proteção contra o frio nos diversos setores do nosso sítio. Aumentamos a área do potreiro, melhoramos as cercas, reformamos os galinheiros e as pocilgas, corrigimos os desconfortos e até mesmo o aspecto de nossa rústica casa. Deixamos o mais difícil para o final: a limpeza do poço. A queda dos filhotes de gafanhotos, em grande quantidade, tinha poluído a água, tornando-a imprestável para consumo. Terminado o inverno, iniciamos o preparo do solo e semeamos trigo, centeio, alfafa, milho, arroz e diversas verduras.

Veio a primavera e, com ela, a beleza dos pampas argentinos. As extensas planuras se transformaram num lindo tapete verdejante, bordado de belas e multicoloridas flores silvestres. Esse belo panorama contagia os homens, que sentem renascer em si o entusiasmo e o prazer de viver. E este aumenta, atingindo o ápice, quando as sementes lançadas germinam e brotam, exuberantes, da terra lavrada.

Era geral o contentamento estampado no face de cada morador da região. Todos anteviam uma safra recorde. Da nossa parte, tratamos logo de contratar uma colheitadeira, pois o tamanho da área plantada e a sua exuberância nos levavam a prever a impossibilidade de fazer toda a safra manualmente. Infelizmente, a nossa entusiástica previsão não se confirmou.

Na semana em que a colheitadeira deveria iniciar a sega, sobreveio uma grande tempestade acompanhada de uma forte chuva de granizo, cujas pedras, em sua maioria, eram do tamanho de um ovo de galinha. Chuvas de granizo, normalmente, não atingem grandes áreas. Inutilizam plantações em faixas de 100 a 500 metros de largura, que se estendem, no máximo, por uns poucos quilômetros. Tivemos a infelicidade de nossas plantações estarem em uma dessas faixas. Com a violência do granizo, a nossa esperada colheita frustrou-se integralmente. A vinda de uma nova nuvem de gafanhotos também estava sendo anunciada, mas, devido ao temporal,  ela se foi para outras regiões. Passado o temporal, verificamos que as plantações de nossos vizinhos tinham ficado ilesas. Entre centenas de pequenos agricultores, somente nós tínhamos sido atingidos. Como na Argentina esses contratempos são comuns, todos os agricultores, no ato da semeadura, fazem o devido seguro. Infelizmente, nos vimos também frustrados com relação a esta providência: o dono da fazenda, com o qual havíamos feito o contrato de meeiros, não fizera o seguro e, então, completou-se a nossa desgraça. Estávamos, novamente, sem nenhum dinheiro.

Abandonamos tudo e fomos nos empregar na cidade, sujeitando-nos a qualquer trabalho, contanto que desse para sobreviver. O meu pai, muito precavido, havia escrito uma carta a um cidadão de nome Conrado Axt, dono de uma olaria na cidade de Ponta Grossa. Eles haviam se conhecido durante a primeira viagem de papai ao Brasil, em 1884. Naquela época, já se  comentava que, em breve, o Imperador , D. Pedro II fundaria uma colônia de imigrantes europeus na região de Ponta Grossa.

Após alguns meses veio a resposta confirmativa. A divisão da terra estava sendo feita. O preposto que D. Pedro II nomeara para a região de Ponta Grossa era o Sr. Frederico Bahls de Almeida. Meu pai também conhecia esse cidadão desde a primeira visita ao Brasil. As demais notícias contidas na carta do Sr. Conrado Axt eram bastante alvissareiras. Frederico Bahls de Almeida, que conhecia a capacidade de trabalho de meu pai, pedia que viéssemos o quanto antes, prometendo até reservar alguns alqueires de terra para que pudéssemos formar uma chácara.

Diante de tal notícia, a esperança reviveu em nossos corações. Exultantes, mal sabíamos o que fazer primeiro. Logo topamos com o primeiro grande obstáculo. Não tínhamos dinheiro suficiente para a viagem. Resolvemos então vender as poucas roupas que tínhamos e pedimos o pagamento dos dias que já havíamos trabalhado. Mesmo assim, o total não era suficiente nem mesmo para uma viagem de terceira classe. Meu pai, que jamais se dava por vencido, saiu em busca de uma solução. Soube que no Porto de Buenos Aires, dentro de alguns dias, aportaria um navio que o governo da Argentina havia posto à disposição de imigrantes insatisfeitos que desejassem mudar para o Brasil, Estados Unidos ou Canadá.

No Brasil, o navio faria escala em São Francisco, Santa Catarina, e também em São Paulo e Rio de Janeiro. Papai embarcou e, quatro dias depois, chegou ao porto de São Francisco. Porto era o modo de dizer, porque nem ancoradouro havia. Meu pai e maís alguns imigrantes alemães com destino a Joinville foram retirados do navio em alto mar por uma pequena embarcação. De São Francisco, meu pai empreendeu viagem a pé até Ponta Grossa, via Joinville, Oxford (situada no município de São Bento), Mafra, Rio Negro, Campo do  Tenente, Lapa, Porto Amazonas e Palmeira.

O reencontro com o Sr. Frederico Bahls de Almeida foi muito cordial. Este, ouvindo a odisséia em terras argentinas, estimulou meu pai a fixar-se na região e lhe prometeu toda a proteção possível. Ainda lhe emprestou algum dinheiro para que fosse buscar a família. Papai viajou a Paranaguá num dos grandes carroções transportadores de erva-mate e, num dos navios que carregavam esse produto, voltou à Argentina. A sua chegada e o relato do seu sucesso nos proporcionaram momentos da mais intensa e pura alegria.

No dia seguinte, despedimo-nos de todos os vizinhos e embarcamos rumo a Buenos Aires, onde tivemos que esperar alguns’ dias, até que se nos oferecesse oportunidade de embarque. Isso não demorou muito, fomos informados de que, no fim daquela semana, partiria um navio com destino a Pelotas, São Francisco e Paranaguá.

Embarcamos, ao cair da tarde, num velho navio movido por duas rodas de água instaladas nas laterais e zarpamos do “novo porto”, se assim podíamos chamá-lo, uma vez que haviam, naquele dia, inaugurado o segundo bloco do ancoradouro do que seria o futuro “Gran Puerto de Buenos Ayres”. Logo na saída, tivemos um pequeno acidente, o nosso navio bateu numa gigantesca draga que ali se encontrava em operação. O susto foi grande mas, felizmente, nada de grave aconteceu e, assim, nos despedimos da Argentina. Durante a noite, enfrentamos uma tempestade em alto mar que muito nos impressionou, infundindo-nos a sensação de mau agouro. Não havia quem não estivesse com enjôo. Quando me senti mal, deitei-me sobre alguns sacos vazios depositados junto à casa das máquinas. Ali, o balanço do navio me parecia mais suave.

Ao amanhecer, chegamos ao Porto de Montevidéo. Porto mesmo ainda não existia. O embarque e desembarque era feito em pequenas embarcações ou no costado dos trapiches. Fizemos baldeação para um navio brasileiro e, no dia seguinte, partimos com destino a Pelotas e Rio Grande. Nesses dois portos, trabalhamos no carregamento de feijão, milho e charque e fomos muito bem remunerados. Em Porto Alegre, fomos surpreendidos por uma carga especial: um grupo numeroso de militares com esposas e filhos. Instalou-se então um tumulto incontrolável. Felizmente, fui convidado pelo comandante do navio para trabalhar como auxiliar da cozinha da primeira classe, cujo cozinheiro-mestre me deu a oportunidade de reservar uma boa alimentação para mim e para os meus. Lamentavelmente, a pouca roupa que eu tinha ficou logo encardida por não haver no navio onde lavá-la e também porque mamãe permanecia a maior parte do tempo deitada, com enjôo. Após uma semana de viagem, atingimos São Francisco, onde nos foi permitido ir à terra. Ali pude ver, pela primeira vez, a habilidade com que um oficial do exército preparava o seu cigarro de palha.

No dia seguinte, chegamos ao porto de Paranaguá. Também lá não havia cais para atracar. O navio ancorou quase em alto mar e, logo depois, um pequeno barco veio nos buscar. Em terra, alugamos uma carreta que nos levou até a estação ferroviária. Que decepção ao vermos as máquinas e  vagões! Comparados com os da Europa e da Argentina, mais pareciam brinquedos de parques infantis. A iluminação interna era proporcionada por velas de cera ou parafina e a externa por lamparinas. Em frente à estação havia um chafariz e um posto coletivo de lavagem de roupas que era freqüentado por algumas lavadeiras negras. Elas lavavam as roupas dos grandes senhores da cidade. Chamou-nos a atenção o fato de todas estarem usando apenas uma camiseta e uma saia, o que, para nós, europeus, era inconcebível. Possivelmente, naqueles tempos, a cidade de Paranaguá ainda não tinha água encanada.

Passamos o dia esperando a hora do embarque para Curitiba, o que só  se deu no dia seguinte. Partimos às oito horas da manhã. Meu pai só balançava a cabeça, admirado de ver máquinas tão pequenas possuírem tanta força de tração. Todos ficamos impressionados com o fato daquele trem, aparentemente tão inexpressivo, conseguir vencer a subida da Serra do Mar. Meu pai, que tinha algum conhecimento de construção de estradas, não se cansava de fazer elogios à engenharia da estrada que percorríamos. Os sucessívos túneis, abertos na rocha viva, e os viadutos formidáveis pelos quais passávamos eram, para ele, motivo de exclamações de admiração. Finalmente, e felizmente, chegamos ao topo da serra. A composição, acrescida de mais dois vagões, prosseguiu viagem.

Algumas horas depois, estávamos na grande cidade de Curitiba. Surpreendeu-nos a excelente localização topográfica da cidade, o traçado e a amplitude das ruas, o que sugeria um futuro de grande desenvolvimento. Calculamos que a cidade abrigava 15 ou 20 mil habitantes. Em Curitiba, permanecemos por alguns dias na pensão da família Ehlers, situada na rua Mato Grosso, hoje Comendador Araújo. Enquanto minha mãe e eu passeávamos um pouco pela cidade, meu pai procurava um meio de transporte para nos levar a Ponta Grossa – a estrada   de ferro ainda não existia. Tivemos que aguardar a volta de um dos carroções  do interior do Estado, que trazia cereais para o abastecimento da  cidade e, principalmente, erva-mate, que  ali era industrializada para exportação ao Uruguai e Argentina. As firmas compradoras do produto em Curitiba eram Leão Júnior, Fontana e mais duas outras, cujos nomes me fogem da memória. Na volta, esses carroções levavam açúcar, sal, farinha de trigo, café, arroz, tecidos, ferramentas e o que mais fosse preciso para o Consumo dos moradores do interior.

Os carroções eram de grande porte, com capacidade  para mil e quinhentos quilos de carga (cem arrobas). Possuíam cobertura total e permanente de lona grossa tratada com óleo de linhaça, tendo a sua parte fronteiriça avançada a fim de proteger o carroceiro do vento e da chuva. As distâncias diárias que costumavam percorrer dependiam do estado das estradas, que eram de leito natural. Essas distâncias variavam de 16 a 24 km. Os carroções eram puxados por oito cavalos. Outros dois cavalos costumavam vir amarrados na traseira, não só para substituírem os mais cansados  mas também para serem atrelados junto aos demais nos trechos mais difíceis.

Viajamos no carroção do Sr. Fritz Scheidt, que meu pai já conhecia. Esse senhor residia na vila de Santo Antônio do Cupim, hoje cidade de Imbituva, onde seu pai era proprietário de uma das mais bem sortidas casas de negócio: um grande armazém de secos e molhados, ferragens, etc. Alojamo-nos debaixo daquele enorme toldo, fazendo da sacaria que era transportada nossas poltronas e camas. Nos dias ensolarados, o calor era quase insuportável e, à noite, o frescor se transformava num friozinho incômodo.

Após cinco dias de viagem, chegamos a Ponta Grossa. Logo que desembarcamos, meu pai se dirigiu à venda do filho do Sr. Frederico Bahls de Almeida, um sortido armazém na esquina da Marechal Deodoro com a Engenheiro Schamber, onde hoje está o Fórum. Entrou em contato com o Sr. Frederico, que foi muito atencioso. Ele confirmou a oferta, feita  anteriormente por carta, de um pedaço de terra e de uma ajuda inicial. Além disso, concedeu-nos hospedagem temporária em sua própria residência. Como retribuição e sinal de reconhecimento, papai e eu fomos trabalhar gratuitamente na sua olaria. Depois das despesas de viagem, tínhamos ainda um saldo de vinte mil réis. .

Alguns dias depois da nossa chegada, o Sr. Frederico nos levou ao local que reservara para nós. Era um terreno situado na parte mais alta da Colônia Taquari, de onde podíamos avistar perfeitamente a cidade de Ponta Grossa. O local era conhecido como Espigão do Taquari. A terra era produtiva e a localidade privilegiada com água fácil e boa. A única dificuldade seria a do isolamento, já que seríamos os únicos alemães em meio a uma colônia composta inteiramente por imigrantes poloneses.

Papai manifestou-se sinceramente agradecido pela atenção dispensada pelo Sr. Frederico. Mas, aconselhado pela experiência vivida na Argentina, pediu permissão para abrir-se com franqueza afirmou que iniciaria benfeitorias sobre o terreno logo após conseguir os documentos de propriedade. Temia problemas futuros, já que, até então, nenhum colono polonês estava regularmente na posse de suas terras. Felizmente o Sr. Bahls de Almeida compreendeu a nossa cautela e nos ofereceu, para moradia provisória, o andar térreo de sua casa.

Ele residia no 1º andar. Como havia necessidade de alojar no mesmo local um casal de velhos escravos, dividimos o amplo espaço do pavimento e ali nos instalamos. Os velhos escravos eram gente humilde e boa e, desde logo, tivemos com eles excelente convivência, difIcultada apenas pela diferença de linguagem. O Sr. Bahls de Almeida tinha também um moinho de cereais e, anexo, uma fábrica de farinha de mandioca (tafona).

Ficou então combinado: até que viessem os documentos comprobatórios da cessão dos nossos terrenos, fIcaríamos trabalhando para ele, como empregados, a dois mil réis por dia, papai e eu. Na época, o trabalhador diarista só recebia os dias trabalhados. Nos dias, pois, que faltasse matéria prima para o moinho ou tafona, poderíamos trabalhar para a vizinhança. Também poderíamos, aos domingos, usar a fábrica de farinha de mandioca para produzir farinha para o nosso uso, retirado o necessário para o consumo do Sr. Frederico e do casal de pretos. A tafona era constituída de um fogão de tijolos com dois grandes recipientes de ferro em forma de frigideira onde, depois de ralada, a mandioca era desidratada. O local em que se encontrava o fogão quase não era ventilado e trabalhávamos horas a fio, só de calção, respirando aquele denso vapor e transpirando muito.

Trabalhamos também alguns dias para os Irmãos Emílio e para Jens Jansen, que exploravam, ali perto, uma serraria. Nunca tivemos folga, nem aos domingos. Sempre havia alguém precisando de ajuda. Mesmo assim, o que ganhávamos mal dava para o nosso sustento.

Já estávamos nesse estágio provisório de vida há quase cinco meses, quando soubemos que a documentação que esperávamos, angustiados, havia, por fim, chegado. No mesmo dia fomos à casa do Sr. Henrique Degraf, perto de Conchas (hoje distrito de Uvaia), que mantinha naquele local um armazém, e compramos o necessário para o início da construção de um abrigo na “nossa” propriedade, gastando até os últimos vinte mil réis que havíamos guardado. O Sr. Henrique mandou que o filho nos levasse até a Colônia Taquari, local da nossa futura vivenda.  Antes de partir, passamos na casa do Sr. Bahls de Almeida para agradecer a hospitalidade que nos havia dispensado. Na mesma oportunidade, meu pai teve a feliz lembrança de pedir-lhe o mapa da divisão dos terrenos da Colônia Taquari, para que pudéssemos localizar corretamente o terreno que nos cabia.

Após mais ou menos uma hora de viagem, chegamos ao local. O primeiro trabalho foi cercar as divisas. O nosso vizinho mais próximo era o Sr. Frederico Bahls de Almeida, que ali havia reservado para si uma boa gleba. O lado oposto estava reservado para um senhor de Joinville, de nome Luis Schmocker, que  alguns dias depois chegou para estabelecer-se. Nos outros dois lados, dois arroios serviam de divisa. Precisávamos, pois, fechar apenas dois lados da propriedade. Deveríamos, antes de mais nada, levantar um rancho para nosso abrigo.

Como não tínhamos dinheiro para comprar tábuas para as paredes do rancho, papai teve a idéia (a necessidade é boa inspiradora) de ir nas poucas serrarias pedir ajuda. Lá conseguiu, pelo preço de retirar do lugar, madeira desclassificada: ripões desbitolados, cantos de tábuas sem valor comercial e, principalmente, costaneiras (a primeira camada da superfície da tora, que tem um dos lados côncavo). As quatro colunas, as vigas mestras e os reforços para as paredes laterais fomos buscar no nosso mato, que tinha inúmeras árvores de madeira de lei. Fizemos a cobertura da casa com tábuas lascadas de pinheiros da propriedade e o piso com barro batido. Como não tínhamos pregos grandes, utilizamos cunhas de imbuia fabricadas pelo meu pai. Os pregos médios e pequenos de que nos servimos foram conseguidos nas demolições que havíamos feito por encomenda, na cidade. Da Companhia Colonizadora, dirigida pelo Sr. Frederico Bahls de Almeida, só nos foi concedido, como ajuda inicial, o seguinte material: ferramentas, manuais para agricultura, ramas de aipim, sementes de hortaliças, de batata inglesa, de arroz e de milho. A casa estava levantada, mas faltavam duas janelas e a porta. Papai, com sua habilidade profissional, logo as providenciou, fazendo duas tampas para as aberturas das janelas e outra maior para o lugar da porta. As janelas e a porta eram fechadas por duas tramei as cruzadas, tendo ainda a porta uma tramela transversal.

E assim estava terminada a nossa casa, cozinha e quarto, que media 4 x 4,5. Dizíamos com certo orgulho: “Esta é a nossa casa”. Lamentavelmente, a pressa e a inexperiência nos trouxeram frustrações. As lascas de pinho que utilizamos para suporte da cobertura foram usadas ainda verdes e, conseqüentemente, muitas se partiram e outras se curvaram de tal forma que, quando chovia, parecia que o teto se transformava num grande chuveiro. Ao providenciar trapos, papel (naquele tempo, muito raro), capim e cascas de árvore para vedar o telhado de tabuinhas de pinho lascado, contra a chuva, e os restos das paredes feitas de costaneiras empenadas, sentimos saudade da nossa casa na Alemanha.

À noite, pelo lado sul da casa, que era protegida da chuva pela orientação do vento, podíamos apreciar as estrelas e a luz pálida do luar. Nas noites mais frias, mamãe chorava em silêncio. Papai, embora condoído e mordido de remorso, fazia de conta que não percebia. Eu não conseguia pegar no sono porque ficava me preocupando com a alimentação do dia seguinte. Só mesmo a fome nos obrigava a comer diariamente o feijãozinho magro. Nos fins de semana é que o feijão vinha mais gordo, acompanhado de arroz. Raramente comíamos pão ou polenta. Não podíamos comprar farinha de trigo (na época, só importada). De quando em quando, conseguíamos espigas de milho que, debulhadas e levadas ao moinho, nos forneciam fubá para polenta cozida ou assada.

Ficávamos satisfeitos quando um vizinho vinha nos convidar para auxiliá-lo na queima de uma roça. Tínhamos então a oportunidade de ganhar um ou dois mil réis por dia e, ainda por cima. recebíamos de presente uma certa quantidade de batata, aipim, alguns ovos e outros produtos de sua lavoura. As nossas plantações estavam lindas, era como se as víssemos crescer verdes e belas. Na verdade, nós as comíamos com os olhos.

Certa noite, a nossa plantação de feijão foi invadida por um bando de veados, e lá se foram as nossas esperanças de vender algum feijão em breve. Igual desastre sofremos com a nossa plantação de milho. As vacas do Sr. Frederico Bahls de Almeida, atraídas pelas viçosas folhas verdes, conseguiram cruzar o ribeirão e, numa só noite, devoraram toda a nossa roça. Pela manhã, as vacas estavam tão empanturradas que até doentes ficaram, e nós, totalmente desolados. Papai tinha uma saúde de ferro, sua disposição nos contagiava. Renovamos o plantio e, em seguida, derrubamos no mato algumas árvores. Com a madeira delas, fechamos os pontos vulneráveis.

Aos domingos visitávamos os vizinhos, até mesmo os mais distantes, em busca de ramas de aipim, mudas de batata doce, de laranjeiras, de mimoseiras e de ameixas decacho (nespereiras). Nestas nossas andanças, fizemos muitas amizades em toda a colônia. Numa das vezes, encontramos um colono que desenvolvia apicultura primitiva.

Sabendo que papai tinha profundos conhecimentos nessa atividade, fiquei muito interessado em iniciar a criação de abelhas, de forma técnica, pelo Sistema Schenk. O apicultor, vendo o meu entusiasmo, convidou-me para trabalhar, durante uma semana, em sua chácara em troca de uma caixa com uma família de abelhas. Passada a semana, levei-a a pé para a nossa chácara, com todo o cuidado, carregando-a nos braços. Cheguei exausto. O sol já estava se pondo, mas ainda deu tempo para instalar a caixa. No dia seguinte, nova frustração: um animal selvagem – irara ou tatu – derrubara a caixa, atrás do mel que ela continha. Logo que vi o estrago, chamei papai e ele, em poucos minutos, conduziu todo o enxame, que se encontrava aglomerado em volta da rainha, colado num galho, para o interior da caixa, sem que nenhuma abelha o ferrasse.

No dia seguinte, recebemos novamente a visita do tatu e conseguimos capturá-lo. Era um gigantesco tatu de rabo mole. Dizem que essa espécie de tatu não é comestível, mas para nós, que há muito não víamos carne nenhuma em nossa mesa, foi um banquete. Posso afirmar que ainda hoje sinto saudades daquela carne doce e tenra.

Num belo dia aparece, inesperadamente, o tio Carlos, vindo da Argentina. Papai e ele foram imediatamente ter com o Sr. Frederico Bahls de Almeida e, assim, também meu tio recebeu a concessão de uma faixa de terra vizinha à nossa. Como ambos, em seu país de origem, tinham sido ceramistas, logo planejaram montar uma olaria. Lenha, possuíamos o suficiente. Conhecedores do ramo, puseram-se à pesquisa e, nas vizinhanças de um olho d’água existente na chácara, encontraram argila de excelente qualidade. A fabricação de tijolos não parecia lucrativa porque já existiam duas olarias entre a chapada e o Distrito de Conchas, pertencentes aos Srs. Frederico Bahls de Almeida e Henrique Degraf. Resolveram, então, fabricar telhas chatas como as que havia na Alemanha. Precisavam construir um pavilhão comprido para a secagem, com estaleiros e, além disso, muitas formas para a moldagem das telhas. Também era necessário um fomo para a queima das telhas.

A necessidade é a mais criativa das conselheiras e o ânimo o mais eficiente dos realizadores. Extraímos o barro, repicando-o com a enxada, e o colocamos numa cisterna. Em seguida, papai, meu tio e eu enfiamo-nos em sacos de estopa, para poupar as nossas roupas, e entramos na cisterna para amassar o barro, pisoteando-o até adquirir uma consistência homogênea, elástica e resistente. Durante o pisoteio, mamãe acrescentava água, trazida em baldes, a fim de amaciar o barro. Como não tínhamos uma mesa para moldar as telhas, preparamos uma pequena área no terreiro, bem plana. As telhas ali moldadas, ali permaneciam até atingirem o ponto ideal de secagem para ir ao fomo. Papai e titio já haviam conseguido, nas olarias vizinhas, o material necessário para a construção do fomo. Este foi feito com bastante antecedência a fim de que, no momento de ser usado, estivesse bem seco.

O trabalho de carregar e descarregar o forno é um trabalho duro e era feito por escravos nas outras olarias. Quando terminamos de fabricar os primeiros milheiros de telhas, apareceu logo um comprador que as arrematou. Às outras olarias existentes não interessava a fabricação de telhas, provavelmente por desconhecerem a técnica. O comprador ainda veio retirá-las da nossa pequena e improvisada olaria.

Um dia apareceu em nossa chácara o Sr. BalduínoTaques que, vendo o nosso sacrifício, ofereceu-nos dois bois em troca de futuros fornecimentos de tijolos. Também nos visitou o Sr. Oscar Roedel, que tinha, no final do bairro da Ronda, uma oficina e uma ferraria para consertos de carroças e carroções, anexo a um bem instalado curtume. O Sr. Roedel nos vendeu, em prestações, uma velha carroça recondicionada que pertencera ao CeI. José Pedro de Carvalho.

Essas visitas fizeram brotar em nós vida nova, enchendo-nos de esperanças. Papai e titio construíram um amassador e os bois passaram a ser utilizados para amassar o barro. Isso nos poupava sacrifício e tempo. Nesta altura dos acontecimentos, já nos sentíamos ricos. A notícia da nossa olaria circulou na região recebemos outra visita importante: o CeI. José Pedro de Carvalho, que nos fez a mesma oferta do Sr. Balduíno Taques: dois cavalos em troca de tijolos e telhas.

Esse material foi utilizado para a construção de sua casa, no alto do atual bairro Jardim Carvalho. E ainda hoje lá permanece para uso de seus descendentes. Também apareceu um desconhecido que nos ofertou um velho cortador de barro precisando de alguns consertos. Após algum regateio, o negócio foi fechado. Dada a versatilidade profissional de meu pai, o cortador logo ficou em condições de uso. A nossa alegria foi grande quando o instrumento começou a funcionar. Enquanto estávamos ocupados com a instalação e melhoria da nossa pequena indústria, a roça que havíamos plantado chegou ao ponto de colheita.

Mas qual não foi a nossa decepção quando a encontramos danificada e parcialmente destruída pelas capivaras, abundantes na região. Apressamo-nos para, em vinte e quatro horas, colher o restante e, assim, evitar a perda de tudo. Pouco colhemos do .feijão produzido, mas foi o suficiente para o nosso consumo durante bom tempo. Com o milho, fomos mais felizes. Colhemos quase todo. As espigas foram amarradas sob o telhado da casa, que, a essa altura já havíamos aumentado em função da presença do tio Carlos. Ainda bem que os animais silvestres (tatetos e veados), naquele tempo muito comuns, não entraram na roça de batata doce e na de aipim, o que nos permitiu colher o suficiente para o consumo e para alguma venda.

Com o dinheiro obtido na comercialização dos produtos da olaria, principalmente das telhas, papai comprou uma vaca com terneiro. Mamãe ficou muito contente, pensando no leite que teríamos nas nossas refeições. Infelizmente, papai nada entendia de criação de gado bovino e o fazendeiro passou-lhe uma vaca que mal produzia o suficiente para a bezerra. Decepcionados, ficamos apenas com o sonho do bom leite, do queijo e da manteiga. Devo acrescentar que o pasto dos nossos animais era cheio de mato e, por isso, eles foram atacados por bernes e carrapatos. A aplicação diária de querosene e creolina para tratá-los dava grande trabalho para nós.

Estava chegando a época de preparo da segunda roça. A experiência adquirida fez com que o trabalho fosse bem mais fácil, menos cansativo e mais eficiente. Aumentamos a área da nova roça e evitamos plantar na beira do riacho para não assanhar o gado do vizinho. O plantio foi feito no alto e ao redor da casa de morada, de onde os animais silvestres eram espantados pelos cães. Também os animais foram confinados num cercado construído nas imediações da casa, evitando, assim, a perda de tempo com a sua busca durante a madrugada, o que, no inverno, se tomava ainda mais difícil por termos que enfrentar as geadas descalços.

Para diminuir meu sofrimento, papai comprou-me um par de tamancos que, por medida de economia, só devia ser usado nos dias de muito frio ou quando eu levava os produtos da cerâmica para a cidade. Na volta, quando eu passava no riacho da Ronda, lavava-os para que ficassem adequados para eventuais reuniões na colônia.

Na realidade, já tínhamos nos tomado verdadeiros caboclos; preferíamos andar descalços o dia todo, até mesmo nas roças. Tudo ia bem mas, certo dia, para surpresa minha, encontrei meu pai muito preocupado. Quando lhe perguntei a razão, respondeu-me, “Já imaginou, meu filho, se algum dia alguém de nós for acometido de uma grave doença, como é que poderemos ser socorridos neste mato, tão distante da cidade? E mesmo nela há tão poucos recursos!” Animei-o, argumentando que nunca estivéramos tão bem como agora. Mas papai, de fato, estava tendo uma premonição. Poucos dias depois, mamãe amanheceu com dores de cabeça, vômitos e início de febre.

De tarde, a febre subiu muito e à noite, mamãe já estava delirando. Meu pai não era um homem instruído, mas não lhe faltava inteligência e curiosidade. Procurava instruir-se através de leituras. Sempre que podia apanhar um livro, lia-o do princípio ao fim. Em todas as visitas que fazíamos às famílias alemãs, ele pedia emprestados os livros existentes, costume que já trouxera da Alemanha. Entre os muitos livros que lhe caíram nas mãos, os que mais lhe interessaram foram os do Dr. Louis Kuhne e do Padre Kneip, que versavam sobre a cura pela água. Papai aprofundou-se nesses ensinamentos pensando, acredito eu, na possibilidade de, algum dia, vir a precisar deles.

Quando, a seu modo, diagnosticou que a doença de mamãe provavelmente seria o tifo, ele passou a se valer de tudo o que havia aprendido, já que não possuíamos recursos para chamar um médico e -muito menos para custear um tratamento alopático. Papai colocou ao lado da cama de mamãe duas tinas com água do poço. Com um lençol, encharcado com água fria, enrolava o corpo nu de mamãe. Renovava o lençol a cada trinta minutos, aumentando esse espaço de tempo na medida em que a febre ia diminuindo. O tratamento foi ininterrupto, dia e noite, até que a febre foi vencida. Esta luta durou dias. Ele permaneceu sem esmorecer ao lado da esposa, não permitindo a nossa aproximação, temendo um possível contágio.

Só depois de muitos dias pudemos visitá-la. Ninguém faz idéia do susto que eu levei quando a vi, magra, olhos fundos e sombreados, sem cabelos, sobrancelhas, cílios e sem as unhas das mãos e dos pés. Prostrei-me à beira de sua cama e chorei convulsivamente, movido por dois sentimentos, a alegria de vê-la recuperada e a dor de vê-la fisicamente transformada. Congratulei-me com ela por haver vencido a doença e a situação. Juntos, fizemos uma oração, agradecendo a Deus por ter-nos conduzido para o seio de uma colônia que se mostrara extraordinariamente solidária durante aqueles dias tão difíceis, diariamente nos auxiliando com alimentos e, mesmo com medo do contágio, se interessando sinceramente pela evolução da doença.

Depois de tudo pelo que passou, papai ainda encontrou energia para pegar suas ferramentas de carpinteiro e ir à cidade procurar serviço, a fim de poder comprar fortificantes para a plena recuperação de mamãe e também alguns metros de pano para substituir as toalhas e lençóis, reduzidos a trapos durante o tratamento. Eu e titio permanecemos na olaria, construindo uma cobertura para a secagem sombreada das telhas. Também construímos um pequeno barracão para o armazenamento de cereais e nele improvisamos uma cozinha, que ficou sob minha responsabilidade; para o pouco que fazíamos, não eram necessários muitos conhecimentos culinários. Do feno guardado no sótão fizemos as nossas camas de repouso. Em muitas noites de trovoadas e chuva, tivemos que levantar para cobrir com palha ou capim os produtos cerâmicos ainda não secos. Muitas vezes encontrávamos, no dia seguinte, em baixo daquela cobertura usada, dormindo enroladas, cascavéis e jararacas. Mas, por sorte, nunca fomos picados. Vencida a época de tantas provações, todos estávamos dispostos a dar início a uma nova e melhor fase, alentados pela grande procura dos produtos cerâmicos, principalmente telhas, e nos animamos a expandir a produção. Extraindo o barro da mesma mina em cada vez maior quantidade, não percebemos que havíamos chegado a um veio de argila que continha muito óxido de ferro. Inadvertidamente, moldamos grande quantidade de telhas. Enfornamos depois a primeira lotação e a queimamos, suportando o calor do fogo de lenha forte durante horas, até que a temperatura atingisse o nível necessário. Quando abrimos o forno, mais da metade das telhas estavam partidas. Com o elevado calor, as partículas de óxido de ferro contidas no barro se dilatam e, conseqüentemente, as telhas estouram. Na fabricação de tijolos não há tanta influência. Dispúnhamos ainda de grande quantidade de telhas molhadas que nem sequer queimamos. Mas não nos deixamos tomar pelo desânimo e saímos em busca de outra mina de barro. Felizmente não demoramos muito para encontrar um barro excelente. Passamos então a fabricar telhas sem falhas e de qualidade superior, indiscutivelmente as melhores em toda a região dos Campos Gerais.

Vendíamos facilmente toda a produção. Também as nossas plantações prosperavam, estavam lindas de encher os olhos. Breve colheríamos a mais farta safra de nossas vidas: centeio, milho, feijão, aipim e batata. Também já tínhamos algumas galinhas poedeiras. A vaca, com o melhor trato, passou a produzir mais leite, e os dias pareciam amanhecer mais ensolarados.

Num certo dia, soubemos que no sul havia estourado a Revolução (Revolução Federalista, 1893-1895). Logo correu a notícia de que as forças federalistas haviam chegado à cidade da Lapa e logo estariam em Ponta Grossa, que, em breve, se transformaria numa praça de guerra. Diante de tanta preocupação, ninguém na cidade fazia compras. Tivemos que suspender a produção da nossa olaria.

Não levou muito tempo para que o primeiro contingente das forças revolucionárias chegasse a Ponta Grossa. Passaram a prender todos os políticos do partido do governo; muitos, inclusive, foram incorporados para servir como soldados. A intranqüilidade tomou conta de toda a região. Como nós nunca havíamos participado de qualquer movimento político, não nos impressionamos com o que estava acontecendo. Considerando ainda que morávamos bastante distante da cidade, praticamente no meio do mato, não esperávamos ser incomodados.

Devo esclarecer que, embora a esta altura – 1893 – não existisse mais o regime escravocrata, a maioria dos escravos ainda não havia tomado conhecimento da Lei Áurea. Os que a conheciam estavam sendo bem tratados e não quiseram a liberdade. Meu pai não aceitava a escravatura e era essa uma das razões que o levava a se simpatizar muito com a Argentina. Lá não havia escravos. Naquele país havia índios, com características próprias, que estavam se adaptando à civilização, muitos chegando a se integrar à vida social. Quando os negros souberam que os revolucionários pretendiam fazer deles bucha de canhão, vieram pedir asilo a papai. Ele os aconselhou a ocupar um matagal nos fundos da nossa chácara e assim formou-se um quilombo que evitou que fossem capturados.

Os irmãos Jensen (alemães vindos da Dinamarca), que residiam na chapada (região aquém de Periquitos), pressentindo dificuldades, mudaram-se para o sertão de Irati. Nós, felizmente, não fomos molestados. Soubemos que, em Ponta Grossa, tanto os negros como muitos filhos de brancos foram incorporados às fileiras dos revolucionários.

Quando achamos que tudo estava correndo bem, a Companhia Militar, aquartelada em Ponta Grossa, foi dividida em pelotões com ordem de arrebanhar todos os bovinos e eqüinos que encontrassem nas redondezas. Quando nos chegou esta notícia, tratamos logo de esconder as nossas criações (dois bois, dois cavalos e uma vaca). Como a nossa moradia ficava situada no ponto mais elevado da colônia, denominado Espigão Taquari, podíamos observar os cavaleiros dos revoltosos prendendo e reunindo os animais da região, inclusive os da colônia alemã de Joaquim Tenente. O Sr. Jacob Schneider tinha alguns cavalos de alta linhagem que foram levados. Alguns colonos perderam todos os seus animais. Não houve consideração nem mesmo para com aqueles que somente possuíam um ou dois animais, indispensáveis para o serviço diário. Investigaram muito sobre o paradeiro de um conhecido fazendeiro morador de Conchas, chamado Ramos, que, segundo eles, era um líder político do Governo. Posteriormente soubemos que, de sua fazenda, levaram mais de cem cabeças de gado e quarenta cavalos. O Sr. Ramos havia preparado um esconderijo nas barrancas do rio Tibagi e, por sorte, não o encontraram. O pelotão acampou junto a um velho moinho de cereais desativado, pertencente a uma família de nome Horst, a qual, sentindo-se insegura, fugiu para a Vila do Cupim (hoje Imbituva). Outro pelotão acampou junto à fazenda dos Ferreira em Conchas. Semanalmente, um grupo vinha à Colônia do Taquari pedir pão, batatas, fubá e o que mais pudesse servir para a sua alimentação. Em troca, recebia-se carne e farinha de mandioca, que os revolucionários tinham em grande quantidade.

Resolvi levar até o seu acampamento uma certa quantidade de batatas, aipim e algumas espigas de milho,para trocar por certa quantidade de carne fresca, o que para nós foi um grande negócio. Salgamos a carne e, depois de curtida, a cortamos em bons pedaços de charque.

Passados alguns dias, tomei a visitá-los, mas desta vez fui mal sucedido: um dos oficiais mandou amarrar-me numa árvore. Ameaçaram me castrar e até me matar se eu não contasse onde se encontravam os nossos animais e os dos vizinhos. Ninguém imagina o medo que passei! Quanto mais eu gritava e implorava a minha soltura, tanto mais os brutos se divertiam. Ali permaneci por muitas horas. Quando me soltaram, saí numa disparada louca e nunca mais voltei para qualquer negócio. Narrei o ocorrido aos meus pais e disse que nada havia delatado. Meu pai me deu umas palmadinhas nas costas e, confortando-me, disse que se orgulhava de mim. Acho que foi o maior medo que passei na vida. Muitas noites depois, eu ainda sonhava com o episódio, acordando suado e muitas vezes até molhado.

O pelotão permaneceu nas imediações por mais ou menos três semanas, mudando-se, então, para mais perto da cidade. Decorridos mais alguns dias, correu a notícia de que as forças federalistas estavam por chegar de São Paulo. No dia seguinte, ouvimos um forte tiroteio. Pensamos que um combate estava se, iniciando mas, na realidade, era um estupendo foguetório com que a população estava recepcionando as tropas governistas. Os revolucionários debandaram, tomando rumo ignorado. O povo pode então respirar aliviado e, assim, tudo voltou à normalidade, graças a Deus.

Sedento por mais notícias, carreguei a carroça com lenha e parti no dia seguinte bem cedo rumo à cidade. Chegando ao bairro da Ronda, fui surpreendido por um grande número de comerciantes, que esperavam a vinda dos primeiros colonos com os seus carregamentos de lenha e demais produtos destinados à venda. Mas eu, ainda assustado, imaginei tratar-se de um assalto e, apressadamente, dei meia volta. o meu movimento foi percebido. Perseguiram-me e, sem querer, tive que leiloar a lenha. A cada instante alguém oferecia um preço maior pela lenha e, assim, acabei por fazer o melhor negócio da minha vida. Descarreguei a carroça, fiz algumas compras e ainda sobrou tempo para visitar o acampamento das tropas do governo, compostas de duas companhias, uma de infantaria e outra de artilharia. Assim, tive a oportunidade de ver bem de perto, pela vez primeira, como era um canhão. Havia vários, de diversos calibres. O acampamento se situava no alto da Fazenda do Juca Pedro (Sr. José Pedro de Carvalho), hoje Jardim Carvalho. Quando cheguei em casa, tive muito o que contar.

No dia seguinte, voltei à cidade, dessa vez levando aipim, batata doce, batata inglesa, milho, feijão e ovos. Vendi tudo com a maior facilidade. À tarde, quando cheguei em casa, papai e titio já tinham dado reinício às atividades da nossa olaria e, logo, tudo estava funcionando a todo vapor. A produção, principalmente as telhas, continuava tendo boa aceitação. Depois de alguns dias, apareceu o Sr. Guilherme Naumann, que estava prestes a iniciar a construção de um sobrado na Praça Marechal Floriano Peixoto (sobrado que ainda hoje existe, ao lado do Quartel General). Viera reservar toda a nossa produção de tijolos e telhas. Na negociação, recebemos seis cavalos e uma carroça reformada. Passei a ser o transportador, fazendo toda a semana uma viagem à cidade e, às vezes, até duas. Os bois eram usados no amassador de barro que papai e titio haviam construído.

Tudo estava correndo maravilhosamente bem. O enxame de abelhas já havia se multiplicado e agora somava vinte famílias. Papai, que iniciara a exploração pelo sistema Schenk (preparo prévio dos favos), começou a colher o mel, cujo excedente pretendíamos vender. Lamentavelmente, o povo da cidade não sabia fazer uso do mel como alimento. Só o usavam para fins medicinais. Mamãe fazia até cerveja com mel, a qual era muito apreciada pelos colonos. O sistema Schenk nos permitia vender os favos cheios de mel e isso favoreceu muito o negócio. Mesmo assim, não conseguimos vender toda a produção. Papai construiu, no porão da casa, uma cavidade revestida de tijolos e cimento alisado (estrangeiro, pois o mercado ainda não dispunha de cimento nacional). Armazenamos ali mais de cem quilos de mel e, como  no inverno ele cristaliza, passamos, alguns meses depois, a vendê-lo em fatias. Nessa época, já havíamos feito um bom número de fregueses na cidade. Lamentamos o fato das viçosas laranjeiras, plantadas a partir de sementes há três anos em terreno rico em humus,não estarem produzindo. Teríamos ainda que esperar dois ou três anos. Isso não seria necessário se as mudas fossem enxertadas, porém, nenhum de nós sabia fazer enxerto. A vaca, comprada há dois anos, não produzia mais leite. Papai a vendeu para adquirir outra de melhor qualidade. De início, por falta de acomodação, houve um inconveniente. Ela teve que permanecer na chácara do vendedor, distante da nossa e por isso a sua ordenha nos tomava muito tempo. Fomos obrigados a melhorar a cerca do potreiro destinado a ela. No dia dezoito de março de 1896 eu completava dezenove anos.

Meu pai presenteou-me com uma bonita sela e um par de botinas. Nos domingos e nos dias santificados, quando sobrava um tempinho, eu encilhava o melhor cavalo e, muito garboso e faceiro, visitava os moradores da região. O cuidado com as novas botinas era grande; só as usava em dias especiais. Muitas vezes, quando ia calçá-las, elas estavam cobertas de mofo e eu tinha que me esforçar para deixá-las em condições de uso.

Com o passar do tempo, descobrimos que no mato da nossa propriedade havia muita erva-mate. Fomos atrás dos extratores para aprender a colhê-la. Na entrada do inverno, resolvemos nos lançar na nova empreitada e, terminada a safra, nos surpreendemos com o resultado obtido. Tive que fazer três viagens com a carroça grande para entregar o produto da colheita.

Terminado o trabalho com a erva-mate, meu pai procurou um colono da chapada para aprender a fabricar corretamente a farinha de mandioca. Provando novamente a sua habilidade, construiu uma tafona modelo que nos permitiu fabricar farinha tão boa que nunca mais tivemos dificuldade para vendê-la. Pude então organizar um cadastro da freguesia fixa que pagava melhor preço. Chegamos até a comprar mandioca dós moradores da região para atender a freguesia.

A chácara tomara-se rendosa, acenando-nos com uma vida melhor. As primeiras prestações do terreno estavam prestes a vencer e os compradores mais antigos já estavam sendo lembrados do vencimento de suas prestações. Desde a idade de dois anos, eu costumava ouvir de meus pais que estava sendo impossível pagar as contas. Agora já estavam mais aliviados. Foi com indescritível alegria que ouvi de minha mãe: “Meu filho, as nossas economias vão dar para pagar a primeira prestação e ainda haverá sobra para as demais”.

Nas minhas viagens de ida e volta à cidade, eu,forçosamente, usava a estrada do bairro da Ronda (hoje Visconde de Taunay), em cuja margem residia o casal Ferdinando Wagnitz e seus cinco filhos: Emílio, Júlio, Adolfo, Olga e Ida. Esta última e eu nos olhamos, nos gostamos e nos enamoramos. De cada viagem eu roubava meia hora para o namoro. No começo era só na janela, depois no portão e, transcorridos alguns meses, fui convidado pelo pai da srta. Ida a entrar. Passados mais alguns meses, com a presença dos pais das famílias F. Wagnitz e Frederico Ansbach, ao redor de uma mesa de café e bolos, festejamos o nosso noivado.

Como eu era o único filho, combinamos, papai e eu, que construiríamos uma casa de alvenaria que acomodasse duas famílias. Tínhamos tijolos e telhas, o madeiramento seria retirado do mato; o corte e a adaptação seriam feitos por nós mesmos. Reservei a madeira de cedro para a confecção de portas e janelas. As tábuas – que eu serrei com a ajuda no nosso vizinho, Luiz Schmücker, contratado como diarista – eram de pinho. Transformar toras em tábuas, serrando-as à mão, é trabalho penoso. Constrói-se um estaleiro, num declive, com aproximadamente três metros de altura. Para rolar a tora sobre ele, aplica-se, na face mais favorável, um trilho (duplo ou triplo) bem resistente, que pode ser de madeira roliça. Colocada a tora sobre o estaleiro, um dos serradores fica em cima e o outro embaixo. Com o auxílio de uma comprida serra, dotada de cabos perpendiculares em ambas as extremidades (traçadeira), a tora é desfeita em tábuas na espessura desejada. Quem serra em baixo, além da força que faz, recebe toda a serragem. É, portanto, quem mais sofre. Por isso, a posição dos serradores é revezada. Escolhemos, para edificar a casa, o local mais favorável, num declive fraco, o que tornava possível a construção de um porão alto, como desejava meu pai. A terraplanagem foi feita manualmente, com pás, picaretas, cortadeiras e carrinho de mão. Movimentamos sessenta metros cúbicos de terra. Passamos, depois, a fazer os alicerces. Infelizmente, tudo caminhava com muita lentidão, pois os trabalhos de rotina da chácara e da olaria não podiam ser interrompidos, já que eram nossa única fonte de renda. A cal, era preciso buscá-la na cidade e a areia nas barrancas do rio Tibagi.

Como a demora estava sendo excessiva, resolvemos, eu e Ida, transformar o paiol numa provisória residência e, logo depois de terminadas as modificações, casamos. Minha esposa sempre se mostrava alegre e contente, ajudando-nos, inclusive, na construção da nova casa. À medida em que a construção crescia, aumentava em nós a esperança de sua breve utilização. Chegávamos até a calcular, aproximadamente, o dia da inauguração.

Entretanto, quando a construção da casa já estava bastante avançada, desentendi-me com meu pai e, acompanhado de minha esposa, mudei-me para a cidade. Na primeira noite, ficamos na casa do meu cunhado Sontag. Poucos dias antes, meus sogros haviam se mudado para um lugar mais próximo da cidade, onde abriram uma pequena casa comercial.

No dia seguinte ao da minha mudança, levei a carroça com os animais de volta à casa de meus pais. Agora, de chacareiros passamos a moradores da cidade. Mas nos faltava quase tudo: moradia, trabalho, profissão e dinheiro! Meu pai sempre dizia que, dos seis cavalos que possuíamos, dois seriam meus, mas como manter, na cidade, dois animais se nem para nós tínhamos alimentação? Lembrei-me, então, da sela que meu pai me havia dado como presente de aniversário e fui à chácara para buscá-la. Pretendia vendê-la, para arranjar algum dinheiro para as necessidades mais prementes. Mas fui surpreendido pela atitude de meu pai, que se negou a entregá-la.

Acredito que ele agiu assim com a intenção de me forçar a voltar para casa. Mas, como filho de Frederico Ansbach, herdei dele muito caráter e não pedi duas vezes e nem mencionei os dois cavalos que ele sempre dizia serem meus. Sabia eu que tudo estava sendo empregado na nova construção. Assim, só me restou voltar de mãos abanando. Tinha sempre em mente as palavras muitas vezes repetidas pelos meus pais: “Quando a miséria bate a tua porta, não permitas a sua entrada, enfrenta-a com a fé de um bom cristão. Agindo assim, nunca estarás só.”

De volta, encontro meu cunhado com uma boa nova: uma de suas casas de aluguel havia sido desocupada e ele a cederia por apenas dez mil réis, embora o aluguel anterior tivesse sido de vinte e cinco mil réis. Ele me ajudou ainda mais. Como era marceneiro, nos fez uma cama, uma mesa, três cadeiras e dois bancos, para serem pagos em prestações quando eu estivesse empregado. Para retribuir, mesmo que parcialmente, esta ajuda, fiquei comprometido em auxiliá-lo nos trabalhos da horta que, devido aos seus inúmeros afazeres, estava abandonada.

Na semana seguinte, servi de intérprete a meu cunhado que não falava o português e contratamos, em parceria, a fabricação e colocação de todo o assoalho e de todo o forro de um dos primeiros sobrados de Ponta Grossa, construído por Amando Cunha (o sobrado referido é, hoje, a Casa da Cultura, na rua Dr. Colares). Devo esclarecer que, naqueles tempos, não havia plainas para tábuas. Tudo era cepilhado manualmente. E a mim coube esse trabalho e, ainda, o encaixe das tábuas. A jornada de trabalho ia das seis às dezoito horas, com o intervalo de uma hora para o almoço. Para que eu tivesse um pouco de descanso, Ida me levava o almoço ao local de trabalho. Infelizmente os pedreiros atrasaram a alvenaria e nós tivemos que suspender o serviço por algum tempo. Esta paralisação me obrigou a procurar outro serviço e foi então que tive a sorte de encontrar o Sr. Gustavo Prochno, que havia empreitado a construção da Estação de Passageiros da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande.

O senhor Gustavo Prochno era construtor de primeira classe e administrador por vocação. Embora analfabeto, tinha um espírito empreendedor e todas as suas atividades eram caracterizadas pelo bom senso, o que o fazia benquisto pela população. Basta que se diga que foi ele o fundador do Clube Germânia (hoje Clube Guaíra). A rapidez com que fui admitido surpreendeu-me, mas rapidamente percebi o motivo. Tratava-se de um trabalho que pouca gente aceitaria. Na situação em que me encontrava, eu tinha que me submeter a qualquer tipo de trabalho, ignorando se ao fim do dia estaria ou não exausto. Jamais fraquejaria; contava com a mocidade e com a força e a resistência que o rude regime de vida da chácara me dera. O trabalho consistia no transporte de grandes blocos de pedra para o alicerce, e na sua difícil colocação. Para buscar o equilíbrio perfeito, eu calçava os blocos com pedras menores e, em seguida, enchia os vazios com massa de reboque bem socada. O mestre Gustavo reconheceu o meu trabalho e, no acerto de contas, recebi um pouco mais do que os outros serventes.

Terminada a tarefa, perguntei se havia condições de me aceitar como aprendiz de pedreiro, e imediatamente recebi resposta afirmativa. Ao chegar em casa, minha esposa e o meu cunhado foram desfavoráveis ao meu plano, fazendo-me ver os vários inconvenientes dessa profissão.

Naquele tempo, não se recebia pelos dias de chuva, feriados e domingos. Depois de pensar melhor, concluí que eles tinham razão. A profissão de marceneiro era a mais indicada. Esclareci ao Sr. Gustavo Prochno os motivos de minha nova decisão. Ele não só concordou como indicou uma pessoa a quem eu deveria me dirigir. Foi assim que acabei em contato com o Sr. Carlos Starke, que havia contratado com o Sr. Amando Cunha os móveis e demais instalações do novo prédio, cuja construção estava sendo ultimada. Starke observara o meu trabalho durante a colocação do forro e do assoalho no mesmo prédio. Não hesitou, pois; em contratar-me. Fez, no entanto, uma proposta quase inaceitável. Eu trabalharia dois anos na base de sessenta mil réis mensais e, só após esse período, passaria a receber salário de oficial. Minha esposa e eu sentamos à mesa e passamos a fazer cálculos de como viver com os cinqüenta mil réis que nos sobrariam depois de pago o aluguel. Sem outra alternativa, arriscamos.

Durante muitas semanas nossa janta consistiu em chá, banana e pão. No princípio de cada semana, Ida se dirigia às charqueadas do bairro da Nova Rússia e comprava um suã de porco ainda colado à cabeça. Essa peça custava de um mil a um mil e quinhentos réis, dependendo do tamanho. Dividíamos em tantas partes quanto os dias previstos para o consumo.

Em 1898, falece em Naumburg – Alemanha (nossa cidade Natal) a minha avó, mãe de papai. Com a triste notícia vinha, na mesma carta, um cheque em marcos que, convertido· ao câmbio do dia, resultou em oitocentos mil réis. Papai, sabendo das dificuldades em que nos encontrávamos, passou-nos a metade da herança. De imediato, apliquei parte do dinheiro na compra de um terreno no mesmo bairro em que morávamos – Ronda (hoje existe neste terreno, situado à rua Visconde de Taunay, uma fábrica de guarda-chuvas).

Nesse ínterim, nasceu a nossa primeira filha, Emma. Com a outra parte da herança, eu tencionava iniciar a construção de uma casa própria. Aproveitando um domingo, fui à casa do compadre Luiz Schmücker, que, quatro anos atrás, havia nos auxiliado no corte de tábuas para a construção da casa na chácara. Agora ele era dono de uma serraria movida a água. Recebeu-me bem e me ofereceu as árvores necessárias, que seriam extraídas do seu próprio mato. Aos domingos, eu escolhia as árvores, derrubava-as e preparava as toras. O Sr. Schmücker, percebendo o meu sacrifício, ofereceu-se para serrar toda a madeira por preço simbólico. O outro vizinho, sr. Augusto Jensen, colaborou com o transporte da madeirama até a serraria por um preço irrisório. Comovia-me aquela solidariedade! E, ao mesmo tempo, eu me orgulhava da qualidade moral dos meus amigos! Papai soube da minha luta e entregou-me os dois cavalos prometidos. Tão logo os recebi, vendi-os e, com o dinheiro comprei os palanques e as ripas para cercar o terreno. O meu cunhado (a quem eu já havia pago os móveis), prontificou-se a construir a casa, concordando em receber a mão de obra em prestações. O meu mestre marceneiro, sr. Carlos Starke, também cooperou, enviando três empregados seus por um dia de trabalho.

Depois de alguns serões e domingos, terminamos dois quartos, com assoalho e forro, e uma pequena cozinha com despensa de chão batido. A cobertura foi feita com tabuinhas de pinho lascadas e bem secas, para que não se repetisse o que havia acontecido na chácara. Ida e eu nos consideramos ricos porque éramos donos da nossa casa e não havia mais aluguel a ser pago. Só faltava o poço. Quando estávamos estudando a localização, surgiu minha cunhada Olga, irmã de minha esposa, disposta a nos ajudar. No início, não aceitei. Esse trabalho não era indicado para mulher. Mas, quando eu menos esperava, ela, depois de providenciar parte do material, iniciava a perfuração. Olga era uma pessoa fisicamente privilegiada e parecia estar sempre esbanjando saúde. Ida, embora mais franzina e esperando o segundo filho, era também sacudida e ajudou-nos sempre que possível. Talvez o estado da Ida fosse o motivo da iniciativa de Olga que, naquela tarefa, trabalhou como poucos homens. Eu só podia trabalhar ali depois das dezoito horas e aos domingos. Mesmo com sacrifícios, conseguimos construir o poço cuja água, por sinal, veio a ser abundante. Toda manhã, antes de dirigir-me ao trabalho, eu juntava, nas vizinhanças, esterco de gado. Ida também cooperava mantendo sempre em ordem a nossa produtiva horta, apesar do seu estado adiantado de gravidez. Venceram-se os dois anos e o Sr. Starke esqueceu de aumentar o meu ordenado como combináramos.

Quanto mais se aproximava o dia do nascimento de Guilherme, nosso segundo filho, mais eu me preocupava. Diante do esquecimento do Sr. Carlos Starke, resolvi procurar outro mestre marceneiro. Encontrei-o na firma Nass Elmer. Era ele o sócio Guilherme Elmer, cunhado de Henrique Thielen, fundador da Cervejaria Adriática. Passei a ganhar o dobro do que vinha ganhando.

Pouco antes de nascer o Guilherme, adoeci com tifo. Meu sogro, Ferdinando Wagnitz, demonstrou muita coragem assumindo a responsabilidade de tratar-me, aplicando o mesmo sistema que meu pai, anos atrás, havia usado no tratamento de minha mãe. Todos os amigos, inclusive os vizinhos, nos auxiliaram de diversas formas. Minha recuperação demorou três meses e, durante este período, nasceu Guilherme. Como medida de precaução, minha sogra cuidaria da criança. E Ida permaneceu na casa de seus pais para amamentá-lo. Chegando ao conhecimento dos meus pais a situação em que nos encontrávamos, estes vieram, num belo dia, nos visitar. O dia ficou até mais belo por termos feito as pazes. Também eles passaram a nos auxiliar com produtos da chácara.

Recuperado, fui trabalhar com Guilherm Elmer, que havia desfeito a sociedade com Adolfo Nass. No segundo mês de serviço, o Sr. Elmer passou a me pagar cinco mil réis por dia e, poucos meses depois, elevou-me à categoria de oficial, com o ordenado de dez mil réis diários. Guilherme Elmer foi um grande mestre. Permaneci sob sua orientação dois anos e ·meio. Certo dia, ele amanheceu doente. O exame médico constatou tratar-se de um mal cardíaco. Passado algum tempo, ele mandou me chamar em sua casa e, expondo-me a situação, me ofereceu a direção da marcenaria na base de cinqüenta por cento sobre o resultado líquido. Algum tempo depois, ele resolveu vender-me a oficina em condições razoáveis.

Era a realização dos meus sonhos, há tempo acalentados. Mas ainda não havia chegado a hora. Quando cheguei em casa, todo contente, pensando na alegria que daria à minha mulher, encontro-a se contorcendo em dores. O seio direito havia infeccionado de forma tão assustadora que fomos, imediatamente, ao médico. Este, no entanto, não se sentiu capaz de realizar a operação e nem tão pouco quis recomendar um médico local. Fomos obrigados a viajar a Curitiba, onde nos indicaram o melhor médico da época, o Dr. Ferenz. Este operou-a logo. E lá se foram as nossas economias.

De volta de Curitiba, eu soube que o Sr. Heitor Manente conhecido e prestigioso construtor na época) havia obtido a concessão da construção de uma casa escolar para o Governo Estadual. Essa casa, quando terminada, recebeu a denominação de Instituto João Cândido e ficava situada no centro da meia quadra entre a Avenida Vicente Machado e a rua Sant’Ana com a Augusto Ribas, fundos do atual prédio da Agência dos Correios e Telégrafos. Mais tarde, o prédio dessa escola passou a ser a Prefeitura e a Câmara Municipal.

Numa das visitas de meu pai, contei-lhe o meu plano de estabelecer-me. Ele o aprovou de imediato. Pedi-lhe, para isso, um empréstimo de cem mil réis. Para a minha surpresa, ele concordou com a condição de que, no pagamento, fossem acrescidos os respectivos juros. Procurei, no dia seguinte, o sr. Heitor Manente e elaboramos o contrato de sub-empreitada de todo o trabalho de carpintaria externa e interna do Instituto João Cândido. Finda a construção, o sr. Heitor confiou-me várias outras obras. Permanecemos unidos por quase três anos.

Durante esse período, foi-me possível reunir dinheiro suficiente para pagar o empréstimo do meu pai, acrescido dos juros correspondentes. Com o que sobrou, pude adquirir mais algumas ferramentas necessárias à minha profissão, melhorar a casa de morada e ainda construir o pavilhão da minha marcenaria. Serviço nunca mais me faltou. Tudo corria otimamente bem. Nesse intervalo de tempo, com a vinda de Alberto, a família havia aumentado.

Nas primeiras horas do amanhecer do dia 1º de janeiro de 1906, fui acordado por um -mensageiro com a triste notícia de que papai havia adoecido gravemente e com o pedido para que eu providenciasse, com urgência, um médico.·A chácara de meu pai ficava a quinze quilômetros da cidade e o meio mais rápido de os vencer seria a cavalo. As providências necessárias e a viagem demoraram algumas horas. Mas os recursos da medicina foram insuficientes para vencer os avanços da moléstia. Papai faleceu naquele mesmo dia.

A causa da sua morte foi a realização de uma festa tradicional na época. Todo último dia do ano, às vinte horas, os colonos se reuniam na casa de um deles, escolhido no ano interior. Traziam alimentos que eram depositados na mesa central do pátio: pães de toda qualidade, cuques, bolos, carnes assadas, salames, lingüiças, pepinos e bebidas. A cerveja caseira de mamãe, feita de mel, era muito apreciada e gozava de certa fama. A sanfona e a rabeca também não podiam faltar, pois animavam as brincadeiras e as danças. À meia noite em ponto, todos passavam a se cumprimentar e, quem possuísse uma arma, apontava-a para o alto e a descarregava. Em seguida, faziam uma oração em grupo, despediam-se, e cada qual tomava o caminho de sua casa. Papai deve ter comido algo que lhe causou um desarranjo intestinal tão forte que, às duas horas da madrugada, já sofria uma forte disenteria, que logo se transformou numa cãibra de sangue. Às catorze horas, falecia. Após o sepultamento, ficamos resolvendo o que fazer.

Não poderíamos deixar mamãe sozinha na chácara, embora ela fosse muito saudável e disposta. A chácara estava muito bem organizada e com um bom rendimento. Tio Carlos também não queria ficar só e resolveu voltar para a Argentina. Depois de vender o seu terreno, ele viajou. Resolvemos então voltar para a chácara e alugar a casa da Ronda. Logo começaram a surgir os primeiros aborrecimentos. O inquilino não era cuidadoso e tínhamos ciúmes da casa que construíramos com tanto sacrifício. Cada vez que por ela passávamos, era doloroso vê-la tão maltratada. Além disso, os filhos, já crescidos, precisavam de escola.

Uma certa noite, fizemos uma reunião com mamãe e tomamos a seguinte decisão: vender a chácara, embora nos parecesse difícil encontrar um comprador que pagasse o que ela realmente valia. Além de plenamente organizada e inteiramente cultivada, era a única em toda a redondeza que possuía uma casa residencial toda de alvenaria, com cômodos suficientes para duas famílias, estábulos para o gado, cocheiras, pocilgas, uma cobertura para as carroças e mais cinqüenta caixotes com enxames de abelhas em produção. A notícia da nossa resolução logo se espalhou por toda a região. Vendemos ao primeiro comprador toda a parte cultivada e alugamos, por um ano, a moradia e demais instalações.

Com o resultado da transação; ampliei minha oficina e construí um quarto a mais para a minha mãe. Vencido o prazo do aluguel da chácara, vendemos a casa para a família Gelinski, que possuía prole numerosa e que ali residiu por muitos anos, só se desfazendo dela quando os. filhos se tomaram independentes e a maior parte deles já havia se mudado para a cidade de Guarapuava.

Com a parte que me coube da venda da casa da chácara somada ao resultado da venda da propriedade da Ronda, eu adquiri, no centro da cidade, um terreno na Rua Dr. Paula Xavier (antiga São João), esquina com a Dr. Colares, que media cento e dezoito palmos de frente por setenta e três de fundos. Comprei-o do Sr. José Grochowski pela importância de novecentos mil réis, valor este pago em dez prestações, razão pela qual só foi escriturado no dia onze de setembro de 1911. Mas o compromisso de compra e venda dava-me a permissão de nele construir o que bem entendesse.

Assim sendo, foi construída a casa da esquina com cinco cômodos, ficando a parte fronteiriça destinada a uma pequena casa comercial, satisfazendo o desejo de mamãe que tanto queria pôr em prática os seus dons comerciais. Ela começou vendendo frutas e produtos coloniais. Nos fundos, onde hoje se encontra instalado o Açougue Max, instalei minha oficina de marcenaria e carpintaria.

Tudo estava se desenvolvendo a contento, tanto que eu não vencia as encomendas, mesmo trabalhando até altas horas. Minha esposa, auxiliada pelos filhos, quando livres das obrigações escolares, saía com cestas de frutas e verduras, oferecendo-as de porta em porta. Trabalhávamos sem olhar as horas, feriados e dias santificados, economizando o máximo possível. Assim, conseguimos o suficiente para que eu pudesse fazer uma viagem à AJemanha, depois de vinte e três anos em terras estrangeiras. O desejo de rever os poucos parentes vivos era grande.

Embarquei em Santos, nos primeiros dias de abril de 1912, num navio de propulsão mista (velas e motor), chegando ao meu destino trinta e dois dias após a partida. Aproveitei toda a beleza da primavera. É indescritível a emoção que senti na entrada do canal de Hamburgo. Ambos os lados plantados com cerejeiras, todas exuberantemente floridas. Os músicos do navio executavam a peça musical “Graças a Deus – são e salvos estamos de volta à Pátria”, com todos os passageiros a cantar. Comovi-me tão intensàmente que, sem conseguir me conter, chorei. Grande foi a alegria quando cheguei na minha cidade natal, Naumburgo, junto ao rio Saale, província da Saxônia, cuja capital é a cidade de Leipzig.

Todos os tios e tias, primos e primas, estavam aguardando a minha chegada, e cada um queria ser o primeiro a me hospedar. Foi preciso fazer um sorteio. Permaneci dois ou três dias com cada parente. Nos anos de infância, quando freqüentava a escola, eu gozava da simpatia de todos os professores. Um dia, resolvi visitá-los. Infelizmente, só o professor Friederich, com quem continuei mantendo correspondência por muitos anos, ainda estava vivo. Nas reuniões com parentes ou amigos eu era solicitado a fazer uma palestra de como se vive na América do Sul.

Nem sempre a verdade usada na dissertação era bem interpretada, em todo caso eu me esforcei para que fosse bem compreendido. Muitos ainda julgavam que Buenos Aires seria a capital do Brasil e que, no interior, só se vivia entre índios, escravos, cobras, onças e lagartos. Estas impressões falsas podem ser explicadas da seguinte forma: muitos aventureiros que aqui no Brasil estiveram aproveitavam-se para impressionar os ouvintes de suas palestras, contando aventuras nunca vividas, das quais eles sempre se saíam como grandes heróis. Nesta minha viagem, pude visitar todos os parentes já conhecidos e conhecer os demais, nascidos durante a nossa ausência, além de fazer novos amigos.

Após muitas festas e excursões, findaram-se os quarenta e cinco dias. Voltei a Hamburgo e embarquei rumo à minha nova pátria. Ao chegar em casa, fui recebido com tamanha alegria que parecia que beijos e abraços não terminariam. Mamãe, que já estava com cinqüenta e cinco anos, mantinha vivas muitas recordações de sua terra natal, o que a fazia se interessar pelos mínimos detalhes da viagem. Tivemos assunto para vários meses. Na oficina demarcenaria, aguardava-me grande quantidade de pedidos.

Como a viagem havia me proporcionado um ótimo repouso, comecei a trabalhar com muita disposição e, até o fim do ano de 1912, pus o serviço em dia. No princípio de 1913, resolvi dar mais apoio à minha esposa no setor comercial. Juntos, fomos ampliando as vendas, o que nos obrigou a procurar outros centros de fornecimento em Santa Catarina, onde começamos a comprar cereais por preços mais compensadores. Trazíamos de lá: açúcar mascavo, melado, arroz e aguardente de qualidade superior à disponível no mercado local. Devido aos preços baixos e à melhor qualidade, fomos conquistando mais fregueses. O vinho vinha de Videira e de Caçador. Entre vinho e aguardente, chegamos a engarrafar dois quintos semanais. O arroz, produzido nos banhados de Jaraguá, Guará-Mirim, Joinville e demais baixadas de Santa Catarina, teve também boa aceitação no comércio de Ponta Grossa.

Em dois de agosto de 1914 é deflagrada a Primeira Guerra Mundial e, como é óbvio, todas as casas comerciais que dependiam de importação entraram em crise, principalmente as casas de ferragens e as que comercializavam ferramentas e máquinas manuais (máquinas de costura, debulhadeiras, desnatadeiras, ferramentas agrícolas, arados de tração animal e outros produtos que, naquele tempo, eram de procedência estrangeira). A importação só reiniciou depois de cinco anos.

Durante esse período, as grandes casas comerciais haviam se tornado indústrias; tanto aqui no Paraná como em Santa Catarina, Rio Grande do Sul e, principalmente, São Paulo. Muito contribuiu para o desenvolvimento das indústrias a vinda de imigrantes europeus, dentre os quais havia muitos artífices. No Paraná, podemos citar a Metalúrgica Müller. Em Joinville, a Metalúrgica Tupi. No Rio Grande do Sul, a Metalúrgica Eberle. Em São Paulo, as indústrias Matarazzo, Crespi, além de muitas outras pioneiras, espalhadas por todo Brasil. Desta forma, os malefícios da guerra proporcionaram o progresso industrial do Brasil.

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